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A estátua de Carmona e as saudades do antigamente

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O tema da eventual recolocação da estátua de Carmona foi desenterrado do bafio histórico onde jazia.
Quando, em meados da década de 80 do século passado, esta matéria foi pela primeira vez discutida na Assembleia Municipal, ficou absolutamente claro que só havia dois ângulos possíveis de análise: ou do ponto de vista artístico ou do ponto de vista político.
O primeiro deles não colhia, desde logo porque o autor, o escultor João Fragoso, declarou não se sentir atingido com a retirada da estátua, tendo em conta ser ela uma encomenda do Estado, obrigatoriamente subordinada aos cânones da iconografia oficial à época em vigor, os quais muito pouco tinham a ver com o percurso estético de toda a obra realizada pelo artista.
Restava pois a questão política e ela era indissociável dum saudosismo revanchista contra os valores de Abril, através do pretexto da utilização duma figura, quer se queira ou não, proeminente na instauração dum regime anti-democrático que duraria 48 anos.
Apesar de aprovado pelo PSD e CDS, o assunto morreu ali e é agora ressuscitado, por iniciativa do CDS, em nome da «verdade histórica», secundado pelo PSD que, numa manobra oportunista de meias tintas, recomenda «a criação de um espaço evocativo com dignidade que preste homenagem a todas as personalidades nacionais e locais que contribuíram para a elevação das Caldas a cidade, em 1927»; (a julgar por esta proposta, não faltarão bustos, estátuas e efígies para uma galeria monumental… e até, quem sabe, recuperar a estátua de Salazar, que estava no Museu Malhoa, da autoria de Francisco Franco, que foi também quem criou a da Rainha Dona Leonor, cuja imagem a Câmara exibe como ex-libris).
A invocação da «verdade histórica», nos termos em que é feita, não passa da demonstração exuberante de que a arrogância é a filha dilecta da ignorância. Ou vice-versa.
O deputado municipal do CDS coincide com a opinião expressa por um militante do mesmo partido (este num artigo que só a ele o responsabiliza, usando e abusando do tom mais virulento e agressivo da linguagem reacionária da guerra fria, chega mesmo ao ponto de associar a possibilidade de recolocação da estátua com a Liberdade em si mesma); para ambos, Carmona foi um genuíno democrata - «quem se dispôs a democratizar o país e a devolver-lhe a liberdade perdida», «laico republicano e maçon», no dizer de um. Para o outro, «um patriota de exceção e um bom presidente da república», «quem tomou em mãos a tarefa de refrear os ímpetos fascizantes»…
É necessário desmontar criticamente estes evidentes esforços de branqueamento, apresentados «não como uma homenagem ao chefe de Estado, mas como uma expressão simbólica da elevação das Caldas a cidade»:
Em primeiro lugar, se o acto de assinatura por Carmona dum documento oficial é, por si, merecedor dum monumento glorificador, é preciso recordar que a mesma assinatura validou, em 1934, a passagem do Forte de Peniche a prisão política onde, ao longo de 40 anos, estiveram encerrados 2487 prisioneiros. Depois sublinhar, que a nomeação interina, por decreto, de Carmona como Presidente da República, num período definido pelos próprios militares no Poder como Ditadura, representou a ruptura definitiva com o que ainda restava da legalidade republicana. Carmona, destacado chefe militar do golpe de 28 de Maio de 1926, defensor da política dos «cirurgiões de espada» porque «a Pátria estava doente», desempenhou um papel decisivo na promulgação da Constituição de 1933 e do que ela representou enquanto fascização do país, na institucionalização do Estado Novo e do regime de partido único, bem como na consolidação do poder pessoal e ditatorial de Salazar. E se, como quer (problematicamente?) o deputado municipal do CDS, ser maçon é um sinal democrático, importa então lembrar que foi Carmona quem, em 1935, assinou a lei que ilegalizou a Maçonaria. As supostas diligências de democratização após a II Guerra Mundial, não são compatíveis com a atribuição do bastão de Marechal em 1947 nem com ter sido o candidato apoiado pela União Nacional nas eleições/farsa de 1949. É disto que se tem que falar quando se refere a verdade histórica. Tudo o resto são mistificações grosseiras.
A CDU denuncia este cínico desejo de restauracionismo, tão exacerbado a que já só faltará o atrevimento de propor que a Praça 25 de Abril retome o seu antigo nome de Oliveira Salazar ou mesmo de 28 de Maio, para ir a par com a estátua de Carmona que, pelos vistos, tanto admiração e vontade de homenagem suscita em alguns (reduzidos) sectores.
 
 
 

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